Transcrição da palestra proferida por Carmem Sílvia Carvalho, realizada no Centro Cultural da Índia, em São Paulo, no dia 30 de janeiro de 2013, por ocasião do 65º ano da morte de Mahatma Gandhi, em sessão promovida pelo Consulado da Índia, o Centro Cultural da Índia e a Associação Palas Athena.

“Boa noite. Quero começar agradecendo o convite da Palas Athena, a Lia Diskin, a honra dessa possibilidade de estar aqui conversando com vocês sobre a experiência que estamos vivendo na Fundação Casa de aplicação dos conceitos de Gandhi. Depois do Eduardo Jorge, que fez uma reflexão profunda e extensa, uma macro-reflexão, eu vou falar de micro-ações, pequenas atitudes que visam a produzir uma transformação. Então, a primeira coisa, necessária, é contextualizar o que foi a Semana Gandhi, dentro da Fundação. Todos vocês sabem que a Fundação é um espaço de muita tensão e violência. Essa violência começa antes dos meninos chegarem. Eles são fruto de uma violência social, com freqüência passam por violências pessoais, depois se tornam também violentos. Eles têm uma relação violenta dentro da Fundação, existe muita violência dos funcionários com os jovens, dos jovens entre si, dos jovens para com os funcionários, é um espaço de muita tensão e violência mas, e isso nem sempre é veiculado, é um espaço onde também existem muitas manifestações de solidariedade, muitas ações de educação, de transformação individual, de transformação social. Então, se por um lado tem uma série de situações de desrespeito aos direitos humanos, também tem uma série de situações de respeito aos direitos humanos e situações positivas.
Foi nesse cenário que eu cheguei, em novembro de 2011, e percebi que, como Gerente de Arte e Cultura, eu precisava usar o espaço que eu tinha para fazer alguma coisa pelos direitos humanos dos jovens dentro da Fundação e, para isso, eu precisava construir um plano, uma estratégia de atuação. Essa estratégia começou por uma mudança, uma articulação dos parceiros que desenvolvem as atividades de Arte e Cultura. São cinco parceiros, que atuavam isolados entre si. Então comecei a organizá-los para que tivéssemos um corpo de ação. Eles são organizações não governamentais e, portanto, são a sociedade civil dentro da Fundação, com seus olhos e a sua possibilidade de atuação lá dentro. Simultaneamente a isso, vi que era necessário modificar a relação dos Centros com a Arte e Cultura, para que houvesse algum espaço de interlocução dentro desse clima pesado e tenso da Fundação, construindo um vínculo de confiança, para que qualquer ação que viéssemos a ter pudesse ser lidada com os Centros numa perspectiva da não violência. E uma das primeiras coisas que eu observei foi que a própria forma como a gestão se relacionava com os Centros continha uma violência, no sentido do não reconhecimento da ação de quem estava na ponta. Os Centros enviavam os instrumentais sobre o que tinha sido feito e a devolutiva era apontar tudo o que eles tinham deixado de fazer, com base no preenchimento. Era só o não. O que eles tinham feito era absolutamente negado. Então eu comecei a fazer um trabalho com os técnicos da Arte e Cultura para que eles enxergassem o nosso lugar de um outro ponto de vista. Então houve toda uma mudança na leitura do instrumental, que foi um primeiro namoro e busca de modificar o padrão de relações. Ao invés de apontar tudo o que eles não tinham dado conta de preencher corretamente, os técnicos começaram a observar o que os Centros faziam e a se colocar diante dessas coisas observando o que tinha sido legal. Aquilo que não estava de acordo, por exemplo, uma Oficina que havia reunido poucos jovens, o técnico ao invés de dizer que o Centro não havia cumprido a diretriz, comentava que estava observando a dificuldade de atrair os jovens e sugeria refletir sobre o que estava acontecendo, se eram os jovens que já não queriam a Oficina, ou o educador que não estava agregando, se o Centro já havia conversado com o parceiro e de que forma desejava que a Arte e Cultura estivesse a seu lado. Assim, os Centros começaram a mudar, a dizer o que eles faziam, iniciamos uma outra interlocução.
Depois que esse espaço estava mais aberto e enquanto isso acontecia, estávamos desenvolvendo com os parceiros, em encontros, um projeto para que a gente trabalhasse a não-violência dentro dos Centros, tanto com os jovens como com os funcionários. No segundo semestre o projeto já tinha um corpo e então consideramos que era o momento de conhecer os Centros e as pessoas e que elas precisavam também me conhecer. Percorri as 11 regionais e falei com os 142 Centros da Fundação, conversando com os gestores e equipes pedagógicas, tanto das Regionais como dos Centros, de modo que aquele início de relação com os instrumentais se materializasse numa relação pessoal. Essa circulação foi muito boa. A gerencia da Arte e Cultura passou a ter corpo e voz, a ir aos locais, olhar para eles, e isso também trouxe uma série de transformações relacionais.
Em outubro, fiz uma videoconferência para todos os Centros da Fundação para contar sobre o projeto de Arte e Convivência que tinha sido elaborado com os parceiros e a Semana Gandhi foi o lançamento desse projeto. Ela não foi um fato isolado, foi um evento que coroou um trabalho que estava sendo desenvolvido. Enquanto isso acontecia, comecei outro trabalho que era de ajudar os Centros e os parceiros a estabelecerem uma relação de não-violência na resolução dos conflitos. A coisa mais comum era um educador agir de uma forma que não era a forma desejada pelo Centro. E, antes de qualquer coisa chegava um e-mail proibindo essa pessoa de entrar no Centro. Aí o parceiro ficava muito contrariado devolvia um e-mail a altura. E isso estabelecia o conflito entre eles.
Havia situações em que o educador chegava ao Centro e não cumprimentava ninguém. Em devolutiva, os Centros faziam tudo para as atividades não acontecerem. Então, havia uma tensão entre os jovens, entre os funcionários, entre os funcionários e os jovens, entre os parceiros e educadores e os Centros. E quando essas situações aconteciam, comecei a fazer círculos de diálogo, para resolvê-las, buscando esclarecer que o que estava acontecendo não era uma situação única, que desentendimentos já tinham acontecido antes e que eu queria sentar todos à mesa não para conversar sobre o fato em si, mas usando o fato para pensarmos em conjunto formas melhores de lidar com os conflitos, mais produtivas, menos sofridas para todas as partes.
Isso tem sido uma experiência de uma grande riqueza. Para isso colocamos juntos: o parceiro, a regional, eu e o técnico responsável pela regional onde o fato aconteceu. Esses círculos têm aberto a possibilidade dos Centros aprenderem a lidar com os conflitos de outra forma. E isso já tem trazido uma série de resultados, inclusive de Centros e parceiros começarem a chamar, a pedir ajuda para fazermos essa mediação, que tem sido muito importante e rica.
Então, foi nesse contexto, em que houve a mudança dos instrumentais, a aproximação da Arte e Cultura com os Centros, esse encontro para a mediação de conflitos, que foi lançado o projeto Arte e Convivência e a Semana Gandhi. Eu propus a Semana como um convite. Queria que os Centros e parceiros participassem voluntariamente, para que tivessem interesse e real adesão à proposta. Que fosse uma participação voluntária. Não foi colocado como uma obrigação. Penso, no entanto, que fiz o convite um pouco em cima da hora, considerando que a organização dentro dos Centros não é simples. Mesmo assim 27 Centros aderiram e produziram trabalhos para a Semana Gandhi. Quando fiz o convite, fiz a proposta bastante aberta: que o lançamento do projeto e a Semana Gandhi fossem um espaço de convivência, onde os jovens, os funcionários das diferentes áreas dos Centros e os parceiros pudessem realizar alguma coisa em arte e cultura em conjunto. O fazer com era o grande pedido. Sem nenhuma outra regra. Cada Centro poderia fazer como achasse melhor, buscando vivenciar a experiência de fazer junto e perceberem a possibilidades dessa convivência.
Apareceram trabalhos muito interessantes. Participaram 661 jovens, funcionários das diferentes áreas, desde os funcionários operacionais, que normalmente são excluídos de tudo, os agentes de apoio socioeducativos, os parceiros. São sempre mundos diferentes – o da limpeza, o da segurança, o pedagógico, o psicossocial. Os Centros de Gestão Compartilhada, que são administrados e tem o trabalho socioeducativo desenvolvidos por ONGs, todos entraram e cada um pensou o que escolhia da mensagem de Gandhi para ser compartilhado. Apareceram coisas muito bonitas e variadas. A Semana Gandhi virou o Mês de Gandhi, novembro inteirinho eles desenvolveram os trabalhos. Muitos Centros assistiram e discutiram o filme da vida de Gandhi, outros leram trechos de sua obra, leram contos indianos, contadores de histórias foram participar, foram feitas muitas palestras sobre os temas de Cultura de Paz e da vida de Gandhi, muitos grupos de discussão com funcionários e jovens, atos ecumênicos, grafites nos muros sobre a paz, peças de teatro, jovens fizeram músicas sobre a paz, danças celebrando a paz e a não violência, colagens, murais, aulas de hip-hop, skates. Houve uma diversidade muito grande de ação. O interessante de deixar livre é isso. Cada um foi criando a partir de sua experiência. Eu trouxe alguns trabalhos para mostrar, como o da Casa Guarujá, que produziu muitas coisas, culminando com uma projeção no chão da imagem do Gandhi que foi sendo preenchida com materiais de reciclagem e depois ficaram surpreendidos com o maravilhoso efeito obtido. Vejam um depoimento: “O dia foi maravilhoso e repleto de alegria. Os jovens entenderam muito bem o trabalho do Gandhi e consideraram o líder um exemplo a ser seguido.” Na Casa Taubaté eles fizeram uma série de ações e o depoimento que escolhi foi o seguinte: “Gandhi – a confiabilidade no seu eu. Enfatizamos a participação efetiva e entusiasmada dos jovens nessas atividades, sobretudo na convivência com o outro, a relação positiva entre seus pares, o ganhar e o perder como uma premissa de aprendizado para a vida”. No Centro Itaquera, onde fizeram também muitas coisas, e ao final tiveram uma aula de skate. O Centro ressaltou “o uso da não-violência como uma forma de gerir conflitos por meio do diálogo.” Essa foi a principal reflexão passada para os mais de 90 adolescentes e funcionários. Na Casa Franco, entre outras atividades, foi construído um grafite na parede, e a reflexão foi de que “a atividade tocou os jovens, fazendo-os expressar a gratidão por terem podido vivenciar essa experiência, por terem conhecido a vida do Gandhi, discutir os ensinamentos dele e de materializarem no grafite as coisas que puderam aprender e discutir. Sentiram-se felizes e úteis ao fazer a discussão”. Na Casa Iaras foi produzido um rap, chamado Paz uma realidade distante, no qual vão analisando não só para eles, mas na sociedade, no mundo, o quanto essa paz ainda está distante. Na Casa Madre Teresa de Calcutá, o evento foi chamado “Em busca da paz” e o depoimento foi de que “nós procuramos despertar o imaginário e a imaginação criativa dos jovens para que eles trouxessem à tona os seus sentimentos e conhecimentos sobre o tema da paz. Reafirmamos conceitos baseados em valores de respeito às diferenças e, sobretudo, a promoção da tolerância em todos os níveis das relações sociais.” Na Casa Sertãozinho, a partir da obra “Operários” da Tarsila do Amaral, os jovens e funcionários fizeram todo um trabalho de construção de máscaras e de móbiles. Por meio desse trabalho buscaram representar a pluralidade cultural do público da Fundação e a união, pelos móbiles, significando “o sentimento de unidade, no seu sentido mais amplo, que só será alcançado a partir do momento em que houver respeito às individualidades.” Vejam um depoimento de um adolescente da Casa Sertãozinho: “enquanto eu fiz me veio um pensamento na cabeça: a paz. Eu me senti mais alegre, conversando bastante e mostrando um pouco do talento que nós temos. Ninguém ficou parado. Como mensagem eu gostaria de falar para que o mundo não tenha discriminação, que todos sejam livres e que tenham muita paz para o resto de suas vidas”. Na Casa Rio Novo eles fizeram um painel a partir da discussão sobre a vida do Gandhi e escreveram “O amor é a arma irresistível que há entre os homens.” Na Casa Mauá fizeram um grafite lindíssimo para estimular uma mudança de mentalidade da atual agressividade, para uma mudança de olhar: “Um novo olhar para o amor, a generosidade, o afeto, o perdão, o respeito mútuo e a tolerância”.
Estimular servidores e adolescentes a adotarem o diálogo como prática pacificadora, a fim de construir um ambiente harmonioso e sustentável. O Centro Turiaçu trouxe a conclusão de que apesar desse trabalho com o grupo Palas Athena, já ter sido realizado no Centro outras vezes, o projeto teve nessa última turma o seu melhor desempenho, pois os adolescentes se mostraram mais interessados, participativos e integrados “A grande diferença se deu também pela Palas Athena ter desenvolvido o mesmo projeto voltado para o corpo funcional em meados de julho.” Acho que isso é essencial. É preciso trabalhar a possibilidade de relações não-violentas entre os jovens, mas, sobretudo trabalhar essas relações também com o funcionários.
Os desdobramentos continuam. O projeto Arte Convivência começou a ser desenvolvido e as Oficinas de Arte e Cultura estão trabalhando essa possibilidade da não-violência por meio da arte, de outra forma de conviver. As rodas de diálogo que antes eram propostas por mim, começam a ser propostas pelos outros. Isso é uma mostra de que circulou na rádio peão que vale à pena, mostra a efetividade da possibilidade dessa relação. E começaram a aparecer em Centros e Regionais outros projetos autônomos de Cultura da Paz. Então, esse gérmen que foi lançado pelo Arte Convivência está semeando e difundindo e é a partir dessa experiência que vai ficando provado que é possível em um espaço como a Fundação Casa, tão impregnado de dor, de tensão, de violência, discutir a possibilidade de relações não-violentas. Isso é possível e necessário. Termino, assim, com uma frase do Gandhi de “olhar o outro com olhar de confiança, um olhar luminoso, e ele verá toda a sua pessoa cheia de luz.” Obrigada