Transcrição da palestra proferida por João Signorelli, realizada no Centro Cultural da Índia, em São Paulo, no dia 30 de janeiro de 2013, por ocasião do 65º ano da morte de Mahatma Gandhi, em sessão promovida pelo Consulado da Índia, o Centro Cultural da Índia e a Associação Palas Athena.

“Boa-noite amigas, boa-noite amigos. Eu estou muito feliz por estar aqui. Estava ontem conversando com a Profª.Lia, na Palas Athena, que estou me sentindo numa estréia, porque é a primeira vez que participo de uma mesa redonda sobre Gandhi. E está sendo muito bom estar do lado dessas duas figuras maravilhosas. Primeiro o Eduardo Jorge que deu uma aula muito boa sobre as grandes idéias, as idéias principais de Gandhi e, depois, a Carmem que nos trouxe essa experiência da Fundação Casa. Eu me lembro que em abril de 2003 eu tinha terminado a apresentação de uma versão de uma peça de Tennesee Willians, Um Bonde Chamado Desejo, dirigido pela Cibele Forjaz, que fez uma temporada de quase dois anos de muito sucesso, e eu estava naquela fase de pesquisa. Ator quando está desempregado fala que está pesquisando. Então eu estava em casa, pesquisando, tocou o telefone e era o Miguel Filliage, um dos autores do texto, diretor da peça, dizendo: ” João, o Alexandre Garret, dono de uma revista chamada RH, vai produzir um fórum sobre recursos humanos cujo tema é liderança e ele pediu um espetáculo de teatro para a abertura do fórum. Eu pensei em termos de liderança, pensei no Gandhi como grande líder do século XX e pensei em você para fazer…” Eu disse “Mas o que eu tenho a ver com Gandhi, Miguel?” Eu tinha um cabelo grande, todo encaracolado. Ele disse “Vem aqui em casa e aí você vê.” Fui lá, li o texto, me apaixonei completamente pelo que estava naquele papel, vi que eu estava diante de uma coisa diferente do que eu estava acostumado a fazer, era um outro tipo de teatro, era outra coisa que ele queria comunicar, uma outra coisa. E começamos a ensaiar. Eu relutando a raspar a cabeça. Propus até colocar uma peruquinha de palhaço – ele disse que ia ficar ridículo. Enfim, uma semana antes da estréia, fui ao barbeiro, raspei a cabeça e quando caiu o cabelo pensei “nossa, tem realmente alguma semelhança com ele”. Tem. Eu não acreditava que tivesse. E aí estreamos no dia 23 de junho de 2003. Era para ser um espetáculo só. Acabou o espetáculo, falei “Miguel, um espetáculo tão legal como esse, agora que entrei de cabeça…” E ele disse “olha, não tenho tempo, meu consultório está cheio e, então, se você quiser tocar a produção, você toca.” Aí conversei com meu terapeuta, “o que é que eu faço?”. Ele: “eu vou te dar uma idéia. O meu irmão é dono de um bar na Vila Madalena, chamado Mojave. O bar fica fechado aos domingos. Eu vou propor para ele você fazer o Gandhi lá.” Aí na hora eu disse “você propõe para o seu irmão para a gente fazer o espetáculo e depois servir um jantar. Aí eu janto com o público, converso com o público…” Ele falou com o irmão, o irmão topou e a gente combinou. Então, a pessoa pagava trinta reais, isso era o segundo semestre de 2003, assistia o espetáculo e depois jantava. Aí eu conversava com o público e assim fizemos. Só que antes de ir para o Mojave, eu tenho uma grande amiga, a Ana Figueiredo e disse a ela “Ana, dá uma olhadinha nesse texto aqui.” Ela falou “ O texto é muito bacana, mas tem alguns conceitos aqui que estão batendo um pouco na trave na concepção gandhiana. Vou apresentar a você a Lúcia Benfatti, lá da Palas Athena, pois eles são especialistas no Gandhi.” Ela trouxe o texto para a Lúcia, que apontou coisas fundamentais no texto, tanto que durante o espetáculo, embora ela não goste muito, eu dou o crédito a ela e à Ana Figueiredo por terem colaborado demais para a concepção do texto, que virou uma concepção teatral. E aí fizemos a peça no Mojave, segundo semestre de 2003. Em 2004, a Cibele Forjaz disse que a FUNARTE, que todo ano dá a uma companhia de teatro o Teatro de Arena para fazer um trabalho de pesquisa, escolheu a Companhia Livre. Então, a Cibele disse “João, vem fazer o Gandhi, para abrir o processo, para limpar todos os fantasmas que tem no Teatro de Arena.” Eu falei lógico que eu vou. Imagina um palco onde pisaram Paulo José, Lima Duarte, Antonio Fagundes, Dina Sfatt, Milton Gonçalves, um projeto criado pelo Augusto Boal. Então, a história do teatro brasileiro da televisão brasileira ali. Eu fiquei muito feliz por poder pisar com meus pés descalços e fazer o Gandhi lá. E fizemos uma experiência que até hoje eu não consegui repetir. Não tinha preço de ingresso lá. A gente punha assim na bilheteria: “pague o quanto quiser após o espetáculo”. A pessoa assistia ao espetáculo e depois punha lá na caixa quanto ela achava que valia o espetáculo. Um dia foi muito legal, o administrador do teatro disse “João, tem um menino que vende bala aqui na esquina da Ipiranga com a Consolação, que está louco pra ver o espetáculo. Ele não tem dinheiro e perguntou se pode pagar com bala.” Eu disse “que coisa maravilhosa” e aí acabou o espetáculo e tinham dez balinhas na caixa. Que coisa linda. O menino foi ver o espetáculo e pagou com bala. Foi uma temporada muito bacana. Aí eu vi no jornal que ia estrear um espetáculo que chamava Quinta nos Infernos. Aí eu pensei: tem Terças Insanas, Quintas nos Infernos, acho que vou alimentar as Quartas com Gandhi. Aí fui procurar um amigo meu, o dono do restaurante Sattva, o Giba, e perguntei a ele “o que você acha?” Ele disse “maravilhoso, vamos fazer que nem lá no Mojave, trinta reais, assiste o espetáculo e depois é servido um jantar vegetariano e você bate papo com a platéia.” Fizemos e ficamos dois anos e meio. Quanto eu fui para o Sattva eu comecei a dar algumas entrevistas, algumas pessoas de empresas, pessoas de publicidade foram me ver, mas a gente estava num momento muito crucial, eu acho, no processo do Gandhi. Estava indo pouca gente lá assistir.A gente estava com alguma dificuldade financeira, eu estava na loucura de tirar dinheiro do cartão de crédito para pagar a produção, poder pagar gastos. Vocês sabem que isso é uma loucura. E um dia me ligam da Secretaria de Cultura de Santa Bárbara d´Oeste. Foi o primeiro momento que a equipe tomou uma atitude concreta do que a gente estava falando em cena. Porque a gente percebeu que se a gente não tentasse, pelo menos, se comportar um pouco como o Gandhi pregava e como a gente estava dizendo no espetáculo, esse projeto não ia longe. E nesse dia me ligou o Secretário de Cultura de Santa Bárbara d´Oeste e disse assim:”João, estamos fazendo uma semana da importância da arte na educação e o rapaz que vinha fazer a palestra de teatro teve um problema de saúde na família e não vai poder vir.” Eu disse “Quando é?” Ele disse “É no sábado à tarde.” “Que horas?” “Dezoito horas”. “Santa Bárbara d´Oeste fica a quanto tempo de São Paulo?” “Ah umas duas horas, duas horas e meia você consegue chegar aqui.” Eu pensei “ Bom eu pensei, o que eu tinha?” Eu dei aula durante dois anos na Oficina de Arte Raul Seixas do Tatuapé. A Diretora ligou e perguntou se eu não queria fazer o Gandhi lá, para os funcionários, professores, seus colegas. Eu disse sim. Ela avisou que seria “na faixa”, não tinha cachê, mas eu topei para fazer para meus colegas, mas só que era no mesmo sábado. E o cachê de Santa Bárbara d´Oeste era mil e quinhentos reais, um dinheiro que a gente estava precisando naquela semana para cobrir alguns gastos de produção e pessoais meus e do pessoal que estava trabalhando. Então eu disse ao Secretário: “Sim, eu já tenho um espetáculo marcado, eu vou ligar para a pessoa e vou ver se consigo me desvencilhar”. Liguei para a Elisabeth contando o que estava acontecendo. Ela disse “Ah, eu te entendo perfeitamente, a decisão que você tomar eu vou aceitar, fique a vontade, mas já tem muita gente inscrita.” Eu desliguei o telefone e pensei “Puxa, a gente está falando de ética, conduta única, verdade, eu já tenho um compromisso com eles… Então eu vou fazer o espetáculo na Oficina Cultural.” Liguei para o Paulo e disse “Paulo, aconteceu isso e isso.” Ele disse “Está certíssimo. Vam´embora.” Fui na Oficina, acabou o espetáculo, uma senhora se aproximou e disso “ Você faz em casa esse tipo de trabalho?” Falei “Faço, por que?.” No Natal tem muitas famílias que querem contratar pequenas peças de 20 minutos. No outro dia me ligou o vice-presidente de um banco e disse “Olha meu filho está fazendo 17 anos, precisa conhecer o Gandhi.” Aí eu fui lá, fiz o Gandhi no Natal dessa família. E a senhora que procurou no teatro disse que ia fazer aniversário semana que vem e queria oferecer, para a família e os meus amigos, o Gandhi.Perguntei a ela “A senhora quer os 20 minutos ou inteiro?” Ela: “Quero inteiro.” Acertamos o cachê, fui lá. Acabou o espetáculo, eu sou míope, vi uma pessoa se aproximando e quando chegou perto vi que era o Luis Gê. Muitos de vocês devem conhecer, ele é um cartunista famoso, trabalhou na Folha de S.Paulo, é um artista gráfico maravilhoso. Nós dividimos a casa na época de faculdade, moramos juntos dois anos. E o Luís Gê é muito amigo do Arrigo Barnabé, fez as capas dos discos dele, os cenários dos shows…Falei:”Luís Gê, o que você está fazendo aqui?” Ele: “Ah, eu estou namorando uma menina aqui na rua da Amélia e, quando soube que era você, vim te ver.” Fazia uns quinze anos que a gente não se encontrava. Aí ele disse:”olha, eu e o Arrigo Barnabé estamos preparando uma ópera para o SESC Ipiranga, sobre o Santos Dumont. Eu vou falar para o Arrigo te colocar no projeto.” Eu falei: “Ah, legal, vou fazer algum personagem ..” Depois ele me ligou e disse “Olha, o Arrigo topou e você vai fazer o Santos Dumont.” Eu disso “Ah, vocês estão loucos, o que eu tenho a ver com o Santos Dumont?”. Ele disse: “É que é um ator canastrão que é brasileiro, mora na França, sabe que estão fazendo um filme sobre Santos Dumont, e vem para o Brasil para se candidatar ao papel.” Aí eu falei “Ah mas eu vou ter de cantar ópera?” Ele disso que não , mas eu acabei cantando ópera também. E foi engraçado. No elenco tinha uma atriz negra, Denise Assunção, irmã do Itamar Assunção, que fazia a Torre Eifel e o Santos Dumont cantava pra ela assim:”Ô lataria velha do primeiro mundo, no meu país eu sobrevôo o Pão de Açúcar, o Corcovado…” Enfim, aí acertamos tudo, a data e aí veio o produtor: “Agora o cara do financeiro vai te ligar.” Ele disse “Olha João, são sete récitas, porque cantor de ópera não pode cantar muito, tem vinte dias de ensaio, então são vinte e sete dias. Olha, você desculpa mas o cachê é um pouco baixo, mas é o que a gente tem pra oferecer.” Eu perguntei: “Quanto vocês têm para me oferecer?” Ele disse “Temos oito mil reais, sei que não é muito….” Aí começou a cair a ficha. Chamei o Paulo e disso: “Olha Paulo o que aconteceu. A gente fez uma promessa, cumpriu essa promessa, deixou de ganhar mil e quinhentos reais que ia resolver um problema imediato, e toda a história se desenrolou e apareceram esses oito mil reais e ainda vai sobrar um troco para cada um.” Aí, a partir daí, as pessoas começaram a lotar o Shatva, isso em 2005. E a partir desse momento a gente não teve mais problema nenhum financeiro, até hoje. Então, o que acontece? Se você fica na verdade, você se compromete, você não fica se desviando do caminho, tem uma resposta. É impressionante a lei da ação e reação. Aí tocamos a nossa produção. Fomos lá pra Praça Roosevelt, onde a barra ainda estava meio pesada. Ficamos um ano e meio no Studio 84. Fui fazer uma temporada no Teatro Alfredo Mesquita , em Santana. E, em 2006, o espetáculo deu um up-grade, em termos teatrais. Foi para o Rute Escobar. Onde fizemos várias temporadas, maravilhosas. Mas o foco continuava – universidades, empresas, colégios…eu comecei a dar entrevistas, fazer alguns espetáculos e aí surgiu o projeto da Fundação Casa. Desde o começo eu pensava o seguinte: “Paulo, a gente está ganhando tanta coisa da Sociedade através desse trabalho, vamos fazer um de graça uma vez por mês para devolver tudo o que estamos recebendo.” E calhou de ser esse projeto para a Fundação Casa e é com grande alegria que a gente trabalha lá. Aconteceram muitas coisas interessantes. Uma basicamente muito interessante, foi quando fomos uma vez numa unidade feminina e ficamos impressionados, pois se via que eram meninas com cabelo bem tratado, pele boa… Aí perguntei para uma funcionária “Escuta, o que é isso?” Ela disso: “É tráfico. Namora o cara errado, se enrola na vida e tão aí…” Eu observei que havia uma menina com uma presilha diferente. Não sei porque eu e o Paulo ficamos muito impressionados com essa menina da presilha e, um mês depois, era dezembro, havia uma matéria na TV Record sobre aquela unidade da Fundação que a gente foi e aparecia aquela menina dizendo:”Tem aparecido uns caras aqui pra falar de Gandhi e eu estou entendendo uma coisa, finalmente, que meu corpo pode estar preso, mas meu espírito está livre.” Você ouvir isso de uma menina, que não tem nem quinze anos de idade, é maravilhoso. Tínhamos também um projeto nas penitenciárias femininas no estado de São Paulo, mas aí quando houve aqueles ataques do PCC nos solicitaram para não ir mais, para não facilitar possíveis seqüestros, houve mudanças na direção da Secretaria, etc. Mas, na primeira penitenciária que a gente fez Carandiru, a Diretora da Cadeia disse que “Uma detenta se aproximou de mim no café da manhã, agradeceu por ter trazido você e me disse que depois que ela assistiu a peça, pela primeira vez na vida ela foi recolhida para a cela dela e ela entrou com a sensação de ter uma mão amiga guiando ela dentro da cadeia.” Você contribuir para mudar um ambiente desses é fantástico. E continuamos. Empresas… Houve uma vez que o Padre Júlio Lancelotti, quando andaram matando uns sem-teto no centro de São Paulo, me chamou para fazer um espetáculo nas escadarias da Catedral da Sé, para 400 sem-teto. Fomos, ficaram em silêncio absoluto. Para mim foi emocionante. Eu tenho uma formação cristã, minha família é católica. E, de repente a gente estar em frente à Catedral da Sé fazendo o Gandhi. Aí acabou o espetáculo, passa uma menininha de uns nove anos e diz pra mim: “O senhor é Jesus?”. Disse “Não minha filha, ainda terei muitas encarnações até chegar perto.” Quando fizeram a novela O Caminho das Índias, o Jornal da Tarde de convidou para fazer uma matéria: eu vestido de Gandhi andando pela Praça da Sé pra ver a reação das pessoas. Foi muito curioso. Tinha um rapaz, um morador de rua, que chegou para mim e disse “É, dizem que o Gandhi morreu, mas ele não morreu não, ele apenas mudou de estação.” E teve um outro que quando eu desci do carro gritou:”Olha o Sadam Hussein ali gente!” . Numa outra ocasião, em um asilo aqui em Santo Amaro, chamado Mão Santa, nós fomos fazer a festa de Páscoa deles. Eu entrei em cena e um velhinho gritou “Papai Noel!”. Quer dizer, de que gaveta da memória ele tirou essa figura? Passei o espetáculo reprimindo o riso.
Então, a gente se comprometeu. Uma coisa que desde pequeno me incomodou muito eram as mentiras ditas sociais, aquelas que a gente acha que não vão causar dano nenhum nas relações humanas, mas elas são devastadoras. Então a gente resolveu parar de mentir. A equipe inteira resolveu parar de mentir para a continuidade do projeto. E mentir não é só mentir para o outro, mas para a gente mesmo também, se enganar a si mesmo. E aconteceu um fato que foi uma verdade que tive comigo mesmo e na hora eu fiz, pretensiosamente, uma analogia: foi o Gandhi vencendo o império da época e um ator convencendo a Globo a aceitar o que eu queria. Foi o seguinte, quando a Globo produziu a série Amazonia, eles me chamaram para fazer. E o diretor, o Marquinho Schechtman, muito amigo meu me convidou para fazer a primeira fase, que se passava no Acre. Eu perguntei “Marquinho como é que vai ser?” Ele disse “Ah, a gente vai ficar no Acre de 15 de outubro a 10 de dezembro.” Eu disse “Puxa, é a época que eu mais trabalho com Gandhi, é época de formatura, festa de empresa, temporada de final de ano que lota os teatros.. Então ele disse “Está bem, então você faz a segunda fase, que será no Rio de Janeiro, em janeiro.” E eu “Ótimo, janeiro é um mês mais parado. E que personagem eu vou fazer?” Ele: “Você vai fazer um personagem da borracha” Na época da Segunda Guerra Mundial o Brasil passava uma seca muito grande e muitos nordestinos foram levados para a Amazônia para colher a borracha, pelo esforço de guerra. Fo interessante porque pude resgatar uma história da minha família, pois meu avô paterno era cearense, de Itapipoca, e ele foi levado nessa época também. Tanto que meu pai nasceu no Amazonas. E eu acho que essa cor que eu tenho, meio indiana, que me ajuda a fazer o Gandhi, é resultado dessa coisa amazonense da minha avó paterna e do fato de minha mãe ser do sul da Itália, com influência moura. Então pensei, vou tentar reviver as energias do meu avô. No finalzinho do ano ele me liga e diz “João, eu e a Glória Perez estamos com um problema. O elenco da primeira fase é muito bom, da segunda também, mas estamos com dificuldades na terceira fase. Você topa fazer a terceira fase? Eu mantenho o teu contrato, te dou até mais um mês e as condições financeiras são as mesmas. Mas só que você muda o personagem.” “Ah, está bem, mas que personagem eu vou fazer?” “Se vai fazer dupla com o Paulão e vocês vão ser opositores ao Chico Mendes.” Eu desliguei o telefone. O Paulão é um ator maravilhoso, mas só faz matador. Pera aí, dupla com o Paulão, opositor do Chico Mendes na mini-série, deve ser para matar. Não posso. Não posso fazer o Gandhi à tarde e matar o Chico Mendes à noite na TV Globo. A televisão é uma coisa muito forte. Passei a mão no telefone e disso “Marquinhos, sabe da minha batalha de mudar o perfil. Na televisão fiz muita coisa de bandido. Estava querendo mudar esse perfil. Comecei numa mini série chamada Aquarela do Brasil, onde fazia um advogado bem bacana que recebia os judeus refugiados da guerra…Marquinhos, estou há quase cinco anos fazendo Gandhi, estou tentando limpar meu carma e você quer me dar um papel para matar o Chico Mendes? Meu querido, eu estou abrindo mão numa boa da minha participação na mini-série. Não posso fazer o Gandhi há tanto tempo e ter uma atitude dessa na TV Globo. Adoraria participar da mini-série mas fica para uma próxima. Se você me desse um papel em que eu entrasse em cena, desse um abraço no Chico Mendes e um boa noite eu ficaria felicíssimo, mas desejo o maior sucesso pra vocês e não vai faltar oportunidade da gente trabalhar junto.” Desliguei o telefone . Passaram-se dois dias. Volta o Marquinhos:” Ô Joãozinho, eu estou aqui editando o primeiro capítulo, ta uma loucura, mas olha só, eu vi teu recado, falei com a Glória Perez, e você tem toda a razão. Se não pode mesmo fazer o Gandhi e matar o Chico Mendes. Você ia fazer um filho do Darli, você tem toda a razão: fazer o Gandhi mudou sua vida, mudou a sua relação com a arte, então vamos respeitar isso e te dar o papel de um fotografo.” A história do Chico Mendes é muito curiosa, como vocês devem saber. Um correspondente do Estadão lá em Rio Branco mandou uma notinha mas caiu na mão de um jornalista interessante, que quis saber quem era aquele cara e aí foi atrás da história e aí virou tudo o que virou. E o Marquinho disse:”Você vai fazer um fotógrafo, que nem tinha na história, mas vai buscar ele na cadeia, vai levar a mulher dele pra ganhar o neném …” E assim fizemos. Olha só, fui verdadeiro comigo mesmo, coloquei de maneira gentil, bem humorada a minha reivindicação, não ofendi ninguém e pedi o que eu achava mais justo, e a TV Globo, por meio de um diretor, de uma autora como a Glória Perez, entenderam e mudaram o que eu ia fazer. Não dá para passar incólume por um personagem desses. Eu senti. Quando eu li o texto, pensei, isso aqui é totalmente diferente, acho que agora eu vou poder começar a contribuir como cidadão. Eu fazia novela, fazia teatro, já tinha uma preocupação social, trazia isso dentro de mim, mas, eu brinco, é como aquela espuminha da champanhe, esse mundo de glamour, esse mundo de cinema…aí comecei a fazer mais o Gandhi, a conhecer mais o Gandhi foi me distanciando um pouco desse mundo. O que por um lado é legal, mas por outro lado também é um tipo de problema para a minha carreira. Outro dia eu encontrei um autor de novela e disse “Ô Lauro eu queria fazer a tua novela.” E ele me disse “Mas você não é o Gandhi?”. Mas o que eu quero dizer a vocês é o que eu sinto hoje é que se tiver de parar de trabalhar hoje eu posso me considerar um homem realizado. Estou a nove anos e meio fazendo esse personagem e brinco, às vezes, que a gente vai da senzala para a casa-grande. Outro dia passamos a tarde inteira na favela de Americanópolis, falando pra 50 jovens. e no final da tarde pegamos um avião e fomos fazer um espetáculo numa Mineradora, que foi comprada por um indiano Botaram a gente num hotel em Vitória, aquela coisa do luxo. E comentamos: “Puxa, a gente saiu de Americanópolis, as pessoas com aquela dificuldade, e agora a gente está aqui.” Eu disse: “Tá vendo, isso é para ver o que a gente não precisa como aquela passagem do Gandhi em frente a um shopping em Londres. Alguém perguntou: “Você quer comprar alguma coisa?” E ele:” Não, não, eu só estou vendo aquilo que eu não preciso.” Então, a gente vai para muitos públicos. Já fiz para uma pessoa que foi no teatro, me assistir. Nós artistas, temos um compromisso com o público. A dona do teatro disse assim “João, é uma pessoa só, você vai fazer?” Eu disso:”Lógico, a pessoa sai de casa, gasta seu tempo, seu dinheiro, e eu não vou fazer? Eu também aproveito, ensaio, experimento coisas novas.” E numa dessas, no caminho de você se manter no caminho da verdade, no caminho do respeito pelo outro, em outra ocasião havia apenas duas pessoas. A Dulce disse “João,tem só dois homens, você vai fazer?” Eu disse “Não tem o menor problema, “ Fiz. Ao final um dos homens chegou pra mim e disse:”Eu sou presidente do sindicato das agências de propaganda do Norte e Nordeste. Me indicaram o teu espetáculo e eu vim a São Paulo esse final de semana apenas para te assistir e gostaria de te contratar para um evento lá na Bahia.” Isso eu aprendi com o Gandhi a abrir os olhos, ficar atento, as oportunidades estão passando na sua frente e se você estiver na verdade, centrado com você mesmo, você tem condições de fazer o que tem de fazer. Isso o Gandhi me trouxe e eu fico muito feliz de estar podendo, no século XXI, como o Eduardo falou, nos somos ocidentais, eu sou mineiro, nasci no sul de Minas, trago muita coisa das águas minerais no meu organismo, então é o Gandhi que passa por este homem urbano, de 57 anos de idade e que traz toda a experiência de ter crescido junto a cachoeiras, junto as águas minerais, que pode mostrar para as pessoas que é possível ser honesto, fazer esse trabalho, ser exemplo. Hoje eu fico muito feliz. A classe teatral é meio engraçada, alguns viraram a cara pra mim e uns poucos dizem que é um exemplo. Eu fui a Portugal participar de um festival na cidade do Porto, um festival que existe desde a Revolução dos Cravos, um diretor falou “João, aqui em Portugal nós não temos a prática de fazer peças com personagens históricos. Você me deu uma idéia de começar a pensar em uns personagens históricos.” Então, você vai fazendo uma coisa aqui outra lá. Estou feliz, tenho trabalhado nas universidades, nas empresas, fiz um espetáculo lindo na Palas Athena. Eu não conhecia a Palas Athena, a Profª Lucinha me chamou para fazer. Quando eu entrei naquele auditório, naquela casa antiga, a emoção da Lia quando viu o Gandhi – então trocamos uma energia muito forte. Então, eu acho que estou contribuindo como cidadão, como ator. Já fui também no CDP2 de Guarulhos. Vocês não imaginam nessas cadeias novas de São Paulo, os caras parecem bichos, Eles têm cela, uma grade e ficam ali o dia inteiro para lá para cá. Isso não é vida pra ninguém. O diretor da Cadeia me ligou e disse “João, eu preciso trazer o Gandhi para cá, porque 80% da população carcerária está entre 18 e 22 anos de idade.” É muito jovem, não dá. A gente tem de fazer alguma coisa. A gente contribui um pouquinho, vai na Fundação Casa, se conseguir tirar um de lá já estou tranqüilo. Alguns amigos me dizem “Ah, você fica enxugando gelo, mostrando Gandhi pra bandido…” Digo a eles: “Sabem o que o Gandhi falou um dia? Eu odeio o pecado, não o pecador” Todo mundo tem uma centelha divina. Se tirarmos um desse mundo do crime a gente já está feliz. O Marcos hoje me falou que tem um menino lá fazendo aula de ioga, imagine o que esse menino faz, ensinando técnicas de respiração, posturas. Na Fundação Casa, na Cadeia, eles falam “Quando vocês vão lá acalmam o ambiente, fica uma energia de calma.” Então, essa experiência de nove anos e meio me faz sentir que eu quero continuar, tenho certeza que quero continuar fazendo o Gandhi, e unir o oriente e o ocidente é uma oportunidade, uma oportunidade de trazer todo o conhecimento, toda a espiritualidade do oriente desenvolveu e tentar aplicar no ocidente.
Para terminar e tentar responder a questão do nosso querido Consul, na minha vida aconteceu isso. Foi um tsunami a entrada do Gandhi na minha vida, que mudou completamente a minha relação com a minha família, com os meus amigos, com o meu trabalho. E hoje o resultado é esse.
Tive também a oportunidade no ano passado, e foi um dos momentos mais felizes dessa trajetória , de fazer um espetáculo com .Arun Gandhi, neto de Gandhi, que conviveu até os sete anos com o avô. Foi lá na favela em São Miguel Paulista. Ele anda pelo mundo hoje falando para jovens de grandes cidades e periferias, falando da não-violência, da cultura de paz. E nós conseguimos fazer uma homenagem para ele. Uma amiga me disse “Olha João, você recebeu tanta coisa de Gandhi e agora está devolvendo para ele através do neto.”.
Essas histórias que tenho vivido me têm dado muita energia para continuar esse trabalho. E com esse apoio da Palas Athena , o Consulado da Índia, esse povo todo que está com essa energia, vai ser inevitável, vai virar, uma hora o bem vai virar. E o que o Eduardo falou é importantíssimo e me deixou feliz é que essa virada vem de dentro, essa revolução vem de dentro, se a gente não mudar por dentro não vai conseguir muita coisa. Eu sou muito grato por um dia o Gandhi ter me escolhido – porque tem essa lenda de que os personagens escolhem os atores – agradeço ao Mahatma por ter me escolhido, para, no Brasil, no final do século XX e comecinho do século XXI, poder dar meu corpo, meu sentimento, minha energia para dar passagem a esses valores e esses pensamentos. Achei muito interessante o que o Eduardo falou, pois era uma reflexão que eu fazia há muito tempo: Che Guevara, Lenine, Mao-Tsé-Tung perante um Gandhi ficam um pouquinho esquecidos. São importantes, homens importantes na história da humanidade, mas o Gandhi está aí, sendo discutido, livros inclusive escritos contra ele –dois que li, que não acrescentam nada, são uma tentativa de ganhar dinheiro – mas ele está aí, com a força da verdade, a força do amor e essa é inquebrantável como o bambu. Muito obrigado.”