Você é cofundadora da Associação Palas Athena. O que motivou a constituir essa associação? Fale-nos sobre seu trabalho e também sobre o trabalho da editora.

Nasci em Buenos Aires em 1950, e desde muito jovem manifestei interesse por filosofia, antropologia, literatura, diversidade das culturas. Esse interesse foi despertado por duas experiências cuja memória guardo com clareza apesar do tempo transcorrido.

Morava naquele tempo perto da Universidad del Salvador, onde o Pe. Ismael Quiles fundou a primeira Escola de Estudos Orientais da Argentina, e dirigiu o Instituto Latino-Americano de Investigações Comparadas Oriente e Ocidente. Frequentemente ministrava palestras aberta às quais eu assistia.

Um dia quis visitá-lo no seu escritório para dilucidar [= elucidar, esclarecer] algumas dúvidas que me inquietavam. Bati na porta, mas ninguém respondeu. Insisti e então percebi que a porta estava entreaberta; devagar entrei na sala e chamei pelo Padre. Ele estava sentado sobre uma poltrona na tradicional postura de lótus do yoga com as pernas cruzadas.

Naqueles tempos os sacerdotes usavam batina preta até os pés, e vê-lo de olhos fechados em evidente atitude de meditação foi como presenciar um diálogo inter-religioso.

A outra experiência juvenil foi ao ouvir uma conferência de Jorge Luis Borges que tratava sobre as infinitas possibilidades da linguagem para criar argumentos e contra-argumentos. Ilustrou sua fala relatando os paradoxos de Zenão de Eleia e, em especial, o de Aquiles e a tartaruga. Na mitologia grega Aquiles é um herói admirado pela sua coragem e também pela velocidade com que corria. Zenão cria um enredo onde Aquiles e uma tartaruga vão disputar uma corrida, mas inclui uma pequena variante: vai dar 1 metro de vantagem para a tartaruga na linha de partida.

Bem, como todos sabem, aí começa a construção do paradoxo, pois Zenão diz que Aquiles nunca vai alcançar a tartaruga visto que quando Aquiles corra esse metro a tartaruga já terá feito mais 10 centímetros e assim infinitamente.

Jorge Luis Borges descrevia essa cena com tamanha vivacidade que, em um momento fiquei assustada com meu próprio pensamento: “como este homem que é cego está fazendo com que eu veja?”.

A Associação Palas Athena é um espaço de reflexão e ação, isto é, oferecemos cursos, palestras, grupos de estudo e, paralelamente, mantemos programas socioassistenciais junto às Secretarias de Saúde, Educação, Assistência Social; a Fundação Casa; o Judiciário, entre outros. 

Como coordenadora do Comitê Paulista para a Década de Cultura de Paz (um programa da UNESCO), como analisa a questão da violência nas escolas? Falta uma cultura de paz por parte das pessoas (alunos, comunidade escolar etc.)?

A escola é o primeiro espaço de socialização das crianças. Lá encontram a diversidade que caracteriza uma cidade, um país, um continente. Lá também encontram adultos que apesar de não ser os pais ou familiares, elas têm de obedecer – há normas, regras, procedimentos, responsabilidades até então desconhecidos. É um espaço ao qual precisam se adaptar.

Mas a escola também é um espaço de ressonância do que acontece na sociedade em que está inserida. Quando as desigualdades são gigantescas e promovem uma cultura de exclusão a diversidade é percebida como uma ameaça, um perigo potencial frente ao qual é melhor manter distância.

Sem dúvida não fomos educados para conviver com o diferente, ignoramos que é justamente ele que pode ampliar e enriquecer nossa percepção de realidade. Qualquer ecossistema é tanto mais sustentável e promissor quanto maior a diversidade que conseguir acolher.

Sabemos que os 3 primeiros anos de vida são fundamentais para uma criança criar vínculos afetivos saudáveis. Se o meio familiar for disfuncional, de abandono, pouco calor humano e cuidado amoroso, a desconfiança vai ser um traço da personalidade futura dessa criança.

Hoje dispomos de muitos estudos, pesquisas e experiências no cenário escolar que podem nos orientar para oferecer balizas comportamentais que se traduzam em ambientes seguros, de legitimação e dignidade para todos. Porém é preciso compreender que a escola está dentro de um contexto social, e que este manifesta violências estruturais preocupantes; para dar apenas dois exemplos: a indústria armamentista é a mais lucrativa em todo o mundo, e os conteúdos dos videogames, filmes, seriados e desenhos animados exaltam a força, a retaliação e a violência redentora.

No ano passado foi publicada a 4ª edição do livro Paz, como se faz? Semeando Cultura de Paz nas escolas, parceria UNESCO/Palas Athena, que escrevi com a Dra. Laura Gorresio Roizman. O livro está sendo distribuído gratuitamente em escolas públicas, e também está disponível para fazer download nos sites da UNESCO e da Palas Athena, sem custo algum. Ali se encontram, além dos suportes conceituais sobre uma cultura voltada à convivência, uma série de atividades interativas e criativas que visam desenvolver a cooperação, solidariedade e empatia como antídotos das injustiças e beligerâncias.

No dia 31 de maio, você ministrará na Palas Athena – e online – o curso “O encontro, em diálogo possível – Martin Buber, David Bohm e Marshall Rosenberg”. Gostaríamos que comentasse um pouco a respeito.

Os três autores que escolhi trabalhar neste curso dedicaram-se ao Diálogo; a especificar seus contornos e diferenciá-los daquilo que chamamos “debate”, “discussão”, cuja intenção é convencer o outro, defender as próprias ideias, desqualificar posições que não estejam alinhadas com as que expressa quem está com a palavra.

Os preconceitos perpetuam-se por falta de escuta qualificada, de diálogo e abertura a novos olhares e visões de realidade. Hoje, em tempos de redes sociais, o que presenciamos são monólogos, afirmações que se apoiam em opiniões ou crendices que não resistem à reflexão, a uma observação a partir de diferentes antecedentes e contextos sociais ou existenciais.

Cultivar a escuta atenta e respeitosa permite avaliar e ponderar sobre o que se ouve para compreender o que verdadeiramente está sendo dito – isso evita uma infinidade de mal-entendidos.

Como a Justiça Restaurativa pode contribuir para diminuir a violência, de maneira geral?

Um dos pioneiros em sistematizar as experiências em Justiça Restaurativa nos Estados Unidos, cujas manifestações iniciais encontramos nos anos 70 do século passado, mas cujas raízes estão no legado dos povos nativos da América do Norte e Nova Zelândia, é o Prof. Howard Zehr, autor dos livros de referência internacional nessa área.

Em Trocando as lentes, publicado pela Palas Athena Editora, o Prof. Zehr começa sinalizando o que a Justiça Restaurativa não é; entre as ideias apresentadas destacamos:

  • A Justiça Restaurativa não tem como objeto principal o perdão ou a reconciliação.
  • A Justiça Restaurativa não é mediação.
  • A Justiça Restaurativa não é uma panaceia nem necessariamente um substituto para o processo penal.
  • A Justiça Restaurativa não tem por objetivo principal reduzir a reincidência ou as ofensas em série.

Então, o que é e para que serve a Justiça Restaurativa?

Ela tem 3 pilares: 1) o dano cometido seja para pessoas ou comunidades; 2) esses danos resultam em  obrigação e/ou responsabilização por parte do ofensor; e 3) engajamento de todas as partes afetadas pelo crime – vítimas, ofensores e membros da comunidade – para tomarem conhecimento do sofrimento provocado e chegar a um consenso sobre como reparar, como corrigir a situação. O fato de o ofensor encontrar-se com a vítima, saber dela e por ela o mal que provocou é transformador. Há milhares de registros, relatos e depoimentos no mundo todo que confirmam o poder curador da palavra, do diálogo e da responsabilização. 

A Monja Coen disse que, para ela, só existe este caminho para uma cultura de paz: o autoconhecimento. Você concorda que o conhecimento de si mesmo pode levar a pessoa a praticar a cultura de paz e, por conseguinte, à não violência?

Se tivermos em consideração que todos sabemos o que é a dor, o desprezo, a traição, a humilhação, a exclusão; também o que é a confiança, o respeito, a afetividade sincera, a solidariedade, não há como ignorar o que cada um de nós provoca nos outros.

A Regra de Ouro que, nas diferentes tradições espirituais repete: “Não faça aos outros aquilo que feito a você causaria dor”; ou na forma positiva: “Aquilo que deseja que os outros façam a você, faça também aos outros”, é um indicador claro sobre a necessidade de autoconhecimento, que não é alienação da realidade circundante, mas familiaridade com os estados da nossa própria mente, com as possibilidades de autoeducação e governabilidade interna, com o poder da liberdade e da compaixão.

Uma pergunta que não fizemos e que gostaria de responder.

Gostaria de deixar para todos nós uma pergunta que Yuval Harari coloca no seu livro Uma breve história da humanidade – Sapiens: “Nós dominamos o meio à nossa volta, aumentamos a produção de alimentos, construímos cidades, fundamos impérios e criamos grandes redes de comércio.  Mas, diminuímos a quantidade de sofrimento no mundo?”. 

Matéria original publicada em: http://www.revistaconexaoliteratura.com.br/2023/05/exclusivo-lia-diskin-e-associacao-palas.html 

Para saber mais sobre o curso “O Encontro, em Diálogo Possível – Martin Buber, David Bohm e Marshall Rosenberg”, acesse: https://loja.palasathena.org.br/cursos.html