Edgard de Assis Carvalho

A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, trata do absurdo da existência humana. Existência que havia perdido substância, peso, valor, no mundo sombrio e opressivo das quatro décadas da ditadura checa, cenário do romance, originalmente publicado em 1983. Na superfície, o relacionamento de dois casais, suas diferenças, similitudes, desníveis; na profundidade, um libelo da liberdade e da leveza que devem reger as relações humanas.

Viver com o outro demanda esforços: intensos, alegres, compensatórios, benevolentes. Sempre se abdica de uma parte de si para conviver com o outro, imaginar-se em seu lugar, sofrer quando ele sofre, doar-se para que a circulação dos afetos e sentimentos se efetive em prol de um mundo solidário e fraterno. Se temos pulsões antissociais, egoístas e mesmo amorais, vamos contê-las, refreá-las, transformá-las para que o altruísmo, as boas paixões, a ética se consolidem como meta, propósito, horizonte do mundo.

O desapego do ego pode ser um bom caminho. Desconstruí-lo implica reconhecer que ele é um ilusionista capaz de ludibriar e nos convencer de que somos o centro do mundo e que é nosso direito subjugar o outro, submetê-lo às nossas escolhas. É esse o embrião-vírus dos autoritarismos, repressões, intolerâncias, malevolências.

Inscritos inegavelmente na longa trajetória evolutiva, nossa arrogância sofreu sérios golpes ao saber que a Terra não era o centro do cosmo, que viemos do outro, que somos habitados pelo inconsciente, rasgando o tecido emocional para as três feridas narcísicas expostas por Sigmund Freud, em 1914. Mas a ideia de sermos os únicos criadores e transmissores de cultura ainda permaneceu. Não somos mais. Destronados do antropocentrismo, ainda é difícil para muitos reconhecer e assimilar que outros seres vivos são tão bioculturais como nós.

Primatas não humanos – gorilas, orangotangos, chimpanzés, bonobos – criam sofisticadas tramas de sociabilidade para o conviver. Suas conexões emocionais são regidas pelos sensos de empatia, afetividade, consolo, cooperação, reciprocidade, justiça, gratidão, interesse pela comunidade.

Destacados estudos da paleontologia contemporânea, como os de Frans de Wall, demonstram que a fronteira entre animalidade e humanidade caiu por terra, embora as culturas humanista e científica que regem os dispositivos institucionais deneguem essa evidência empírica e cognitiva. Essas duas culturas insistem em não reconhecer que uma quarta ferida narcísica já está instalada em nossa mente. Manter intocável essa fronteira é um retrocesso educativo, pedagógico, simbólico.

Mas, afinal, o que é a cultura? Um conceito-armadilha, definido como um conjunto sistêmico de regras, padrões, instituições, ao qual se presta obediência e resignação. Uma fábrica da ordem como sabiamente alertava Zygmunt Bauman. A cultura foi também considerada como revestimento, exoesqueleto que se sobrepõe à crosta das relações econômicas e políticas. As divisões entre cultura erudita e popular, elitista e massificada se incumbiram de mostrar que esse revestimento era desigual, dependia das diferenças e contradições sociais. Cada classe social com sua cultura, cada povo com seus padrões. O relativismo foi a consequência funesta dessa interpretação.

A cultura deve ser pensada – adverte Edgar Morin – como circuito metabólico, jogo múltiplo de ordens, desordens, interações, reorganizações que moldam o convivial. Com a globalização, o sentimento de comunidade, do comum, perdeu-se nas brumas imateriais das redes sociais. O comum implica partilhas, compartilhamentos, coparticipações. Envolve planilhas de reconhecimento mútuo, enraíza-se na experiência.

O comum nos leva a refletir sobre ações e decisões que tomamos no cotidiano, mesmo que elas pareçam reproduzir padrões, ritmos, códigos, números. Vivemos cercados de formatos e convenções: casa, trabalho, afetividade, política. É urgente transcendê-los para que o conviver se estenda para além dos limites das comunidades de pertencimento. Somos uniduais, ao mesmo tempo naturais e culturais, sensíveis e inteligíveis, sábios e loucos. Lidar com essa dualidade simultaneamente oposta e complementar, este sim é o desafio.

Primatas humanos enlaçam a todo tempo o cerebral-espiritual-cultural-social e o físico-biológico-zoológico. Presas inelutáveis do espírito do tempo e da historialidade, somente a partir desse enlace seremos capazes de diagnosticar, propor, teorizar, imaginar a complexidade do real e o real da complexidade. A submissão, a monotonia, o conformismo das sociedades líquidas devem ser substituídos por espirais de audácia, criatividade, revolta, que invistam no sentido trinitário indivíduo/sociedade/espécie. Por isso, somos híbridos, polifônicos, indeterminados, impermanentes.

Treinar a mente é prioritário, mas esse treinamento é longo, cotidiano, por vezes desanimador. A mente treinada não se deixa sucumbir face aos conflitos interiores e exteriores que nos assolam e oprimem. Estar sempre atento aos sinais, praticar a atenção plena preconizada pelo Budismo, não permitir que a fraqueza da vontade, a acrasia, se instalem. Meditar é cultivar a si mesmo, ter discernimento diante do mundo e de si, é aprofundar uma fenomenologia da percepção para poder lutar e agir em prol da banalidade do bem. Esse é o caminho.

A confrontação e a animosidade trazem danos irreversíveis para o conviver, elas impedem que a benevolência e o altruísmo se propaguem. O verdadeiro altruísmo é desinteressado, sua única finalidade é a benevolência. O mais crucial é estender essa benevolência para além dos membros da família, dos amigos próximos, e fazê-la chegar à comunidade de destino de todos os humanos, preservar a casa comum, o oikos, repensar em tempo real a relação com a natureza, escutá-la com humildade, preservá-la e não dominar e destruir o que pertence a todos.

A verdadeira escuta não se restringe apenas aos divãs analíticos, ela implica o exercício rigoroso da presença, da tentativa de aliviar o outro dos próprios medos. Escutar é doar-se. Escutar é presença plena diante do mundo e do outro, justa medida de todas as coisas.

Num mundo repleto de vampiros, de Lestats que saem à noite dos seus túmulos para sugar o sangue dos outros e, impunes, voltam para seus esquifes antes do raiar do dia, faltam oásis de fraternidade que resistam à crueldade do mundo, como Edgar Morin denomina essas pequenas ilhas de solidariedade que enaltecem o conviver, o reconhecimento, a ajuda mútua, o altruísmo, a ética.

Existem antídotos para combater agentes do Mal, sejam eles vampiros ou não: crucifixos, réstias de alho, água-benta, mas também revoltas, insurgências, literaturas, artes e poesia. Quem viu a Série Negra, de Goya, Guerra e Paz, de Portinari, Guernica, de Picasso, Abaporu, de Tarsila, quem leu As flores do mal, de Baudelaire, A terra devastada, de Eliot, quem se perdeu nos labirintos de Em busca do tempo perdido, de Proust, quem se reencontrou nas tramas de Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, se dá conta dessa força indômita que habita em nós, que nos anima a prosseguir mesmo diante da crueldade e da insignificância do mundo.

Na trama de Kundera o cão Karenin ignora a dualidade do corpo e da alma, não conhece a vergonha. Seu amor pelos donos é desinteressado. Sua dona o aceitou tal como ele é. Se o educou, afirma Kundera, não foi para mudá-lo, mas para lhe ensinar uma linguagem elementar que facilitasse sua convivência e a compreensão dos outros.

É dessa linguagem elementar que precisamos com vital urgência. Talvez seja ela que, finalmente, nos permitirá superar a opressão, valorizar a simplicidade, a
compreensão, realizar a paz perpétua preconizada por Kant e, de modo consciente, coparticipar da sustentável leveza do conviver.

Edgard de Assis Carvalho, Coordenador do Complexus, vice-presidente do Instituto de estudos da complexidade, Rio de Janeiro, Assessor permanente do GRECOM, grupo de estudos da complexidade, UFRN.